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O Brasil e a emergência do Direito Internacional

publicada em 17 de agosto de 2020
O Brasil e a emergência do Direito Internacional


Bolha demográfica da proliferação de cursos pelo país, que preocupa pela cautela da preservação da qualidade, não é o mal maior

JORGE FONTOURA

Crédito: Pixabay

Como partícipe protagônico da comunidade internacional, máxime após o reordenamento mundial do segundo pós guerra, em olhar perspectivo e prospectivo, o Brasil tende a consolidar-se como ator exponencial tanto na política externa, quanto no velho mas sempre renovado direito internacional público.

Mercê de sua cultura, de riqueza humana e geopolítica, da extensão e integridade de seu territórios, da solidez de suas instituições, da dimensão da economia real e potencial (nono maior PIB dentre os 193 membros da ONU), democracia de quase 150 milhões de eleitores, o Brasil compõe aristocracia de estados, uma restrita dezena de nações diferenciadas na macro política externa.



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No plano do direito internacional, na contra corrente da voga do debate binário, importa, com percepção virtuosa, destacar a presença externa brasileira, devida em grande medida à tradição jurídica, à inteligência aplicada de sua academia e de seus internacionalistas, ainda com mais efeito após a Constituição de 1988. A nova Carta foi um choque de modernidade, com desdobramentos formidáveis, posto que em meio a sucessivas crises, como a que atualmente ocorre, sem precedente e sem poupar países ou continentes. É nessa voragem de desacertos mundiais, acendrados pela pandemia, que desquerer ou desqualificar o Brasil, malgrado todas as circunstâncias, é desconhecer o mundo.

Muito defasado no plano jurídico, com ensino que provia atraso e não ao contrário, nas décadas perdidas abandonou-se o direito internacional, relegado à “matéria facultativa” ou, pior, “perfumaria jurídica”. Em um átimo, porém, repristinou-se a esquecida disciplina, com retorno a nossas origens e baluartes: Nabuco, Rui, Clovis, Pessoa, foram internacionalistas; o primeiro presidente do Conselho Federal da OAB, em 1940, Levi Carneiro, foi internacionalista.

Também foi internacionalista seu sucessor e segundo bastonário, Raul Fernandes, imortalizado pela norma que leva seu nome, uma valiosa ideia em forma de oxímoro (que contribuiu para a criação de tribunais internacionais), a clássica “cláusula facultativa de jurisdição obrigatória“. A própria história do Brasil se inicia com episódio versado em direito das gentes, com o emprego da lei internacional, da concórdia e do entendimento, a considerar a simbologia que encerra o Tratado de Tordesilhas, de 7 de junho de 1494. Uma verdadeira certidão de nascimento do raro país continental, com tantas fronteiras, mas pacífico e conciliador que haveríamos de ser.

Se nem sempre prestigiamos na cultura jurídica a disciplina de Grotius, nosso último processo constituinte (1986 a 1988) foi divisor de águas. A par do texto produzido, contendo o estado da arte de tratamento constitucional internacional, paradigma no direito constitucional comparado, também a nova Carta de 1988 descortinou uma miríade de novidades. Saíamos da caverna.

E o final do século foi de descobertas cosmopolitas, das novas vertentes jurídicas internacionais e do direito externo, dos blocos econômicos, do direito do consumidor e da propriedade intelectual, dos direitos do mar, antártico e ambiental, do direito da concorrência e do comércio internacional, da mediação e arbitragem, apenas como alguns exemplos. E como pano de fundo e com capital importância, a ideação da face externa da jurisdição, da percepção de que tribunais internacionais não são tribunais estrangeiros. Ao fim e ao cabo, o elevado sentir de pertencimento a uma ordem jurídica internacional, intergovernamental por certo, mas com direitos e com responsabilidades.

Assim como a natureza não dá saltos, também esses prodígios não caíram dos céus. Devem-se à uma restrita plêiade de constituintes notáveis, vocacionadas ao direito e às luzes, como Ulisses Guimarães(com seu assessor Miguel Reale Júnior) e Marco Maciel, que, separados por leituras ideológicas, eram unidos pelo direito internacional público, jovens professores da disciplina que foram, em São Paulo e em Recife. Como também não mencionar os constituintes Affonso Arinos de Mello Franco, Bernardo Cabral, Nelson Jobim, José Fogaça, Vivaldo Barbosa, cariocas, mineiros, amazônidas, gaúchos, dentre outros varões de Plutarco de privilegiada geração.

Desses férteis tempos, também aporta-nos qualidade e valor, a conquista da ratificação do Convenção de Montego Bay, de 12 de outubro de 1982, ocorrida somente em dezembro de 1988, contra opinião pública recalcitrante, que não entendia as vantagens circunstâncias que o só o direito internacional poderia garantir quanto ao direito do mar.

E foi da academia que veio a corajosa iniciativa a princípio incompreendida, para reconsiderar o mar territorial vastíssimo, o critério das duzentas milhas unilateral e precário, mas incorporando a inovadora zona econômica exclusiva e suas potencialidades.Bem mais tarde, se heróis houvera na conquista jurídica do pré-sal brasileiro, hoje pacificamente reconhecido, aqueles paladinos deveriam ter seus nomes professorais sempre reverenciados, de Belém do Pará ao Largo de São Francisco, Aderbhal Meira Mattos, Guido Soares e Marotta Rangel.

Acerca da presença brasileira na composição de tribunais internacionais, como reflexo do prestígio acadêmico e político do país, só a faculdade de direito da UFMG, a Casa de Afonso Penna, formou três juízes da Haia. Um feito, ainda a que comparar-se com nossas doutas ancestrais, as Universidades de Coimbra e de Lisboa. Ao todo, o Brasil forneceu sete juízes para o tradicional tribunal, um acervo de honra e de distinção, número que poucos países lograram atingir.

Ainda, em recente momento, eram juristas brasileiros que presidiam a maioria dos demais tribunais internacionais, a incluir o Tribunal Marítimo, em Hamburgo, e o Órgão de Apelação da OMC, em Genebra. Neles, então nos representavam os memoráveis professores Marota Rangel e Luiz Olavo Baptista. Também, nesse período, eram brasileiros os presidentes dos tribunais internacionais da América Latina, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL.

Na convicção de que o soft power das Nações deriva em grande medida – e cada vez mais, em mundo difuso e de múltiplas polaridades – do respeito à força desarmada do direito, pelo prestígio ao direito internacional, não há como deixar patente a vocação brasileira para a solução pacífica de controvérsias, do diálogo, do compromisso e da diplomacia.

Não por outra razão, há ainda a destacar a importância da presença brasileira nas forças de paz das Nações Unidas. Por certo, tanto pelo profissionalismo e pelas virtudes militares de seus soldados, de suas praças e oficialato, quanto pelo peso histórico da bandeira ostentada. Bem por isso, como boinas azuis por excelência, contingentes brasileiros são sempre requisitados, presentes nos mais diversos continentes e missões mais árduas, desde o histórico Batalhão de Suez, em 1956, e, mais recentemente, com a participação modelar das três forças, principalmente no Haiti e no Líbano.

Por último, não há como deixar de mencionar, mesmo em breve memorial, que muito contribui para o dinamismo do revigorado direito internacional brasileiro, a ingente hiperatividade acadêmica, de institutos, congressos e associações de estudo por todo o país. São incontáveis núcleos especializados espalhados pelas faculdades de direito, nas comissões de relações internacionais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e de suas seccionais, nos institutos de advogados, sem esquecer a consolidação dos cursos de relações internacionais, tanto na universidade pública como no ensino privado.

Também a pós-graduação vocacionada a temas internacionais, ainda que matizados em meio às diversas disciplinas jurídicas, converge para produção acadêmica fluida e valiosa, bem documentada por tantas revistas jurídicas que se multiplicam. Toda essa sinergia claramente incide no mercado editorial, com a crescente publicação de teses e de dissertações, livros didáticos, manuais e obras de referência.

A bolha demográfica da proliferação de cursos pelo país, que preocupa pela cautela da preservação da qualidade, não é o mal maior, a aplicarem-se os corretos mecanismos de correição e de regulação. O tempo ensina a caminhar. De toda sorte, felizmente já distamos da época em que, nas bibliotecas e livrarias jurídicas, o espaço “direito internacional” se restringia ao final sombrio de alguma prateleira perdida. Meninos eu vi.

“Direito Internacional: Percursos e Perspectivas” é uma série de artigos quinzenais resultante de uma parceria entre o JOTA e o Ramo Brasileiro da International Law Association (www.ilabrasil.org.br), a mais antiga e tradicional agremiação dedicada ao Direito Internacional e às Relações Internacionais em atuação no país. A série reúne grandes nomes do internacionalismo brasileiro. A International Law Association foi fundada em uma conferência internacional em Bruxelas, em 1873. Hoje, está presente em mais de 60 países e regiões. O Ramo Brasileiro da ILA, denominado ILA Brasil, foi fundado em 1950 pelo embaixador Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva.

JORGE FONTOURA – Jorge Fontoura, doutor em direito internacional pela Universidade de Parma, Itália, e pela USP, Membro do Conselho Superior da ILA Brasil, é advogado, professor e árbitro internacional, ex-presidente do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL. Como docente, atuou na formação diplomática, como professor titular do Instituto Rio Branco e membro de suas bancas de concurso. Como consultor, atuou no Conselho Federal da OAB, no Senado Federal e no Programa das Nações Unidas para a África e Guiné Bissau.
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